O NAVEGANTE
Este termo, O NAVEGANTE,
nos fala muito de perto. Não por sermos hoje um navegante, mas sim
por ter sido através dele que iniciamos a nutrir nosso sonho, de
fazermos a volta ao mundo num veleiro de cruzeiro.
No início da década de
70, liamos o livro O NAVEGANTE de Morris West, onde nos envolvemos
de tal forma com a narração, que acabávamos por decidir que aquela
seria nossa vida no futuro.
Desde aquela época que
começamos a alimentar este projeto mantendo sua chama sempre acesa.
Fomos fazendo nosso planejamento, analisando todos os dados, que na
época eram quase nada. Finalmente em 1995, mais de 20 anos depois
partíamos para a tão esperada e sonhada viagem.
As emoções daqueles
primeiros momentos, quando deixávamos à cidade de San Diego, na
Califórnia, onde havíamos adquirido o GUARDIAN, até hoje povoam
nossa memória.
Justo por tal, e como
naquele livro, nossa primeira parada foi o Hawai, onde se desenrola
sua historia.
É bem verdade que os
tempos eram outros, mas a nostalgia sempre a nos massagear, o que
nos levava a outros momentos inesquecíveis.
Hoje já decorridos quase
oito anos de cruzeiro a vela pelo mundo, pois no próximo dia 05 de
março farão oito anos que adquirirmos nosso amigão, começamos a
notar que estamos começando a nos transformar realmente em um
navegante. Notamos isto claramente quando estamos velejando e ou
fazendo alguma passagem e nosso comportamento quando chegamos a
terra.
Nossos hábitos mudaram
totalmente, já não temos mais aquele espirito de viver na cidade,
passamos a notar quantos erros se nos apresentam, em todos os
aspectos. Analisamos tudo que nos cerca de outra forma, não só os
aspectos mais chegados, mas também aqueles que são ditos
conjunturais.
Torna-se muito difícil
para nós hoje, não estabelecermos comparações com os locais em que
estamos e nosso pais. Coisa que nos leva sempre a externar em nossos
escritos tais análises que por vezes são até vistas de outra forma
por seus leitores. Chegamos a receber sugestões que escrevêssemos
mais sobre cruzeiro e esquecêssemos estes aspectos. Tal propositura
demonstra claramente este nosso novo mundo de navegante, pois as
pessoas que estão envolvidas no cotidiano das cidades não tem como
ver o quadro de outra forma. Até entendemos, pois já estivemos
também dentro desta mesma redoma.
Outro aspecto que nos
traz a vida de navegante é aprender a viver em espaços menores. O
GUARDIAN não possui mais de 25 metros quadrados, é onde vivemos e
tudo está dentro deste espaço, o que nos obriga a estabelecermos
normas de convivência bem diferenciadas daquelas da cidade ou de uma
residência.
Hoje confessamos que não
sabemos mais se teremos condições de viver novamente em uma casa, o
que no futuro viria a se confirmar.
Recordamos que quando em
2001 e 2002, estivemos no Brasil, para participarmos do RIO BOAT
SHOW, ainda que estivéssemos com uma agenda intensa, de entrevistas,
palestras e outros, o viver enclausurado nos dava uma estranha
sensação de desconforto. Não tínhamos aquele suave balançar do mar a
nos adormecer. Nosso sono era pesado e não leve como em nosso
amigão, sentíamos falta daquele ambiente fantástico que nos cercava.
Enfim vivíamos realmente fora de nosso mundo de nosso habitat.
Costumamos colocar que
nossa casinha é pequena, porem o quintal é o mundo!
E, como vivemos muito
mais no quintal, não há necessidade de se colocar que não há quintal
igual ao que vivemos.
Aprendemos a vivenciar
aspectos de vida que em hipótese alguma na cidade teríamos.
Inicialmente quanto às decisões a serem tomadas, quase em sua
totalidade temos muitos mais elementos para adotar a solução
adequada, ou a decisão correta. Ainda soma-se ao fato a
extraordinária experiência adquirida, a cada dia, mesmo o mais
tranqüilo e simples destes, é um notável mundo de ensinamentos
novos. Como sempre apomos, o velejar em cruzeiro pelo mundo é um
sempre aprender, uma eterna escola. No mar estamos sempre aprendendo
detalhes até por vezes imperceptíveis, mas de notável valia.
Tudo, mas tudo mesmo,
para o navegante, é uma aula, é o ganhar experiência!
Sentimos hoje só um
desconforto, é quando temos que fazer a internet em terra, quando
estivermos, no futuro, com este sistema instalado a bordo, não nos
moldes atuais que são caríssimos. Diríamos quando tivermos a
internet no mesmo sistema que temos em nossas residências, através
de uma BRODBAND, rápido e barato, fatalmente haveremos de estar
muito mais tempo afastados em pequenas ilhotas nativas ainda, sem
necessidade de estamos em portos.
Por vezes e não raras,
diríamos até com muita freqüência, fundeamos no embate de uma nativa
ilha, e descobrimos um mundo fantástico. Incursões pelos recifes
notando a fauna marinha, vendo a facilidade para alimento, pescado e
frutos do mar. Depois em terra, quais a frutas que dispomos. Tudo
isto se torna uma incrível e extraordinária experiência, viver em
comunhão constante com a natureza. Nestes momentos é que as lições
são de grande profundidade.
Retornamos ao GUARDIAN
sempre com idéias e pensamentos que se não estivéssemos navegando
jamais os teríamos. Citamos este aspecto, porque em inúmeras vezes
estamos em algum local que se encontram turistas acampados e notamos
ser nosso comportamento frente ao ambiente totalmente diferente. É
ai que realmente temos uma noção exata de sermos navegantes.
Hoje o epicentro de
todas as nossas atenções é o GUARDIAN, é sempre o procurar soluções
para aumentar seu desempenho e nossa comodidade. É o seu arrumar
constante, hábito que deve ser de imediato adquirido por aqueles que
desejam fazer seu cruzeiro a vela pelo mundo. Não só pelo aspecto de
limpeza, mas também pelo aspecto segurança. Cada coisa tem seu local
especifico e de olhos até fechados achamos o desejado, isto é de
fundamental importância. Em um veleiro de cruzeiro cada coisa deve
ter seu local especifico e ali estar para sempre.
Estar sempre revendo uma
ferragem mesmo um pequeno parafuso, olhando sua madeira, verniz,
pintura, ou seja, supervisionarmos e sempre o nosso amigão, o
instrumento capaz de realizar o nosso sonho.
O navegante conhece cada
som, cada simples movimento de seu veleiro, de sua embarcação, está
sintonizado com seus mais íntimos detalhes. É exatamente por tal,
que quando chegamos às cidades vemos o desperdício que se há. E,
obviamente, tecemos nossos comentários a respeito.
Agora mesmo aqui em
Langkawi, onde estamos no momento, a fim de exemplificar, estamos no
Iate Clube, aliás, um belíssimo projeto de arquitetura. Entretanto,
os materiais aplicados em sua construção estão em total desacordo
com sua localização. A estrutura é toda de ferro, o que ocasiona a
ferrugem acentuada, por estar cerca do mar, madeiras e muitas,
expostas ao tempo, apodrecendo mais facilmente e coisas deste tipo.
No aspecto intimo do ser
e do viver, ganhamos outro prêmio de proporções inimagináveis, somos
capazes de ficar horas, em profunda meditação, conversando com nosso
interior de forma plena, donde advém, obviamente, um valor muito
maior para nossa espiritualidade. Passamos a nos deter em muito mais
tempo analisando as coisas nossas internas, o começo, o fim, a vida
e este nosso fantástico DEUS. Passamos a ter muito mais aproximada a
idéia de como somos tão pequeninos diante do universo.
Se ganha outra
perspectiva, se adquire novos valores, se encontram novas respostas
e passamos a nos conhecer melhor e infelizmente, passamos a ter uma
exata dimensão das pessoas. Hoje sabemos de imediato reconhecer quem
e’ quem, o que por vezes gera terríveis decepções.
Outro aspecto que
passamos a ter um profundo respeito é quanto ao administrar nossos
temores. Sim, pois ai é que se passa realmente a conhecê-los, e
dizer que não há medo, é das maiores ignorancias!
Temos por vezes medo e
não vemos vergonha nenhuma em assumir este dizer. Todavia, passa-se
a ter uma exata dimensão deste medo, pois sabemos exatamente de
nossos conhecimentos e nossas limitações e se torna bem mais fácil
administrar estes temores, que na sua grande maioria estão
envolvidos com a conjuntura de comportamento do ambiente em que
estamos inseridos, mais ligados aos aspectos climáticos e ao mar.
Ora, se sabemos ler suas
informações, seus avisos e obedecemos as suas regras, a coisa se
torna muito mais controlável e tranqüila.
Justo por tal, sempre colocamos que obedecendo aos ditames da
natureza fazer um cruzeiro à vela pelo mundo é muito mais fácil que
muitos imaginam.
E o viver sempre dentro
daquele velho ditado mineiro: “Passarinho na muda não canta”. O que
vale dizer que com mau tempo o navegante se mantém ancorado.
Infelizmente os grandes
medos não são provocados pela natureza e sim pelas mãos do bicho
homem, que este sim, é imprevisível e terrível e neste aspecto temos
que estar com todas as possíveis soluções bem a mão.
O aspecto financeiro que
tanto preocupa aqueles que desejam fazer seu cruzeiro à vela pelo
mundo, hoje já estamos mais calmos a respeito. Pois notamos que em
alguns locais o dinheiro não representa nada.
Recentemente, fizemos
nossa viagem de Phuket na Tailândia para Langkawi, pelas fantásticas
ilhas do Mar de Andaman. Desta feita procuramos estar tão somente
nas ilhas mais afastadas e com o objetivo de evitar utilização de
numerário e até um pouco mais afastados da civilização.
Não ligávamos o
geradorzinho e arranjávamos gelo com a maior facilidade com os
barcos pesqueiros, que durante o dia estavam fundeados perto de nós,
o gelo era gratuito, ou trocávamos por peixes. Da mesma forma,
quando tínhamos boa quantidade de peixes ou frutos do mar a bordo,
demandávamos a uma ilha mais povoada e trocávamos por aquilo que
necessitávamos pão, frutas, refrigerantes, etc. Dinheiro nunca
entrou nestas transações, o sistema era de troca, e ninguém querendo
levar vantagem, a coisa fluía naturalmente.
Quantas e inúmeras vezes
ao cair da tarde nos dirigíamos para uma isolada e vazia praia,
limpa sem restos de plástico e sujeira e fazíamos nossa pequena
fogueira e nos deliciávamos com uma mariscada, um peixe assado na
brasa, ou mesmo uma lagosta. Tomávamos nossa água de coco natural e
vivíamos tempos de totais amenidades. O dia do mês, da semana, para
nós era algo de desperdício pensar, mal olhávamos para o relógio,
nosso tempo era marcado pelas marés, o amanhecer e o anoitecer, esta
era nossa ampulheta.
Vivemos desta forma
cerca de 15 dias e cada vez e mais nos convencemos que este é
inegavelmente o grande momento da vida do navegante. Quanto mais
longe estivermos da civilização, mais plenamente estaremos afastados
de problemas e fatores adversos.
O sonho de ser
navegante, para aqueles que o nutrem e desejam fazer o mesmo será
facilmente realizável, a partir do momento que passarem a não viver
mais presos ao fator financeiro, o que sabemos ser muito difícil,
principalmente numa sociedade como a nossa, altamente materialista.
Hoje estamos convictos ser este inegavelmente o grande pensar do
navegante. Viver muito mais a natureza e suas nuanças e viver a vida
de forma mais livre.
João Sombra
Langkawi, fevereiro 04
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